sexta-feira, 11 de julho de 2008

História da Escravidão 1

O professor José Flávio Motta ensina história econômica na USP, onde desenvolve estudos sobre a escravidão no Brasil. Em 2006, ele veio à UNB participar do seminário "História do Brasil e Demografia, quando doou à biblioteca um exemplar do seu livro "Corpos escravos, vontades livres" (que a gente espera ainda esteja lá!).
Recentemente, Motta assinou o artigo "Dinamismo econômico e batismo de ingênuos - a libertação do ventre da escrava em Casa Branca e Iguape, província de São Paulo, 1871-1885", escrito em co-autoria com seu orientando, Agnaldo Valentim, e publicado na revista Estudos Econômicos.
O artigo tem um desenho metodológico simples e eficaz: compara os padrões de batismo de crianças filhas de mães escravas em duas localidades: uma dinâmica, Casa Branca, e outra decadente, Iguape. Na primeira, os negócios do café proporcionavam a compra de escravos de outras regiões, primeiramente vindos de outras províncias e depois, comprados de senhores em São Paulo mesmo. Na segunda cidade, a cultura do arroz não rendia tanto e os senhores frequentemente consideravam vender seus escravos para fazer algum dinheiro. Em resumo, havia em Casa Branca uma crescente população escrava: fosse os trazidos de fora, fosse os nascidos ali. O inverso acontecia em Iguape.
O período examinado pelos autores já inspirou muitos trabalhos, pois, como se sabe, a Lei do Ventre livre, de 1871, promoveu a matrícula dos escravos existentes no Império e das crianças nascidas de mães escravas. Claro que hoje vemos esta lei como mais uma manobra protelatória da emancipação total dos escravos e também é conhecido que as crianças nascidas sob a condição de livres ficavam sob o julgo dos senhores até atingir a idade adulta.
Isso é importante, mas as mudanças de 1871 também permitem ao historiador conhecer mais sobre a população escrava existente no país então. Robert Slenes já explorou essa possibilidade e os autores que estamos comentando oferecem uma contribuição a mais a esse debate historiográfico.
As variáveis examinadas são clássicas em estudos demográficos: padrão de masculinidade (proporção de escravos homens na população cativa), distribuição dos escravos por idade e gênero, padrão de nascimento de crianças, legitimidade das crianças (se são registradas com nome de mãe e de pai), legitimidade das uniões dos cativos (se as mulheres são casadas formalmente), intervalos intergenésicos (tempo decorrido entre uma e outra gestação) e, por fim, o compadrio.
Motta e Valentim examinam um respeitável número de ocorrências e chegam a conclusões importantes. Na região do café, por haver mais escravos, também há mais nascimentos. Não nos apressemos em concluir que isso se deve a condições de vida mais amenas para os escravos e sim por haver nas fazendas mais homens disponíveis para as mulheres em idade fértil. Quanto à ilegitimidade das crianças, sabe-se que isso era muito elevado em toda parte, no entanto, os autores observam que havia sensivelmente mais crianças ilegítimas na região produtora de arroz. Por que? Porque ali os senhores não permitiam que as escravas se unissem formalmente com os pais das crianças, uma vez que imaginavam poder vender a todos, adultos e crianças, a qualquer momento.
Esse quadro nos permite imaginar que era "melhor" ser escravo em Casa Branca que em Iguape? Nem tanto. Se nesta última localidade, os cativos viviam intranquilos com a perspectiva sombria de serem vendidos para outros senhores e serem afastados das pessoas de que gostavam, na região cafeeira, os escravos se deparavam com platéis compostos por escravos de origem diversa, gente estranha com a qual conviver vida afora sem laços prévios de afeição. Tanto havia maior vínculo comunitário na população escrava de Iguape, que os autores encontraram ali mais madrinhas e padrinhos escravos nos registros de batismo, do que em Casa Branca. Neste lugar, os cativos preferiam, sempre que possível, colocar a criança sob a proteção de um homem livre, escolhido para apadrinhar.
Um último comentário sobre o padrão de nascimento das crianças: quanto mais nascimentos ilegítimos, menor o tempo decorrido entre uma gestação e outra. Em outros termos, em Iguape, onde quase não há casamentos formais, as mulheres tinham filhos com maior frequência. Já em Casa Branca, em havendo uniões formais, as mulheres evitavam filhos seguidos. Exatamento o por quê, o artigo não esclarece, mas o assunto faz pensar.
O historiador social pode se assustar com a aridez das perguntas apresentadas às fontes e se ressentir da falta de sensibilidade quanto ao drama humano que transparece na documentação compulsada. Bobagem. A escravidão moderna é uma daquelas (re?) invenções da sociedade ocidental que nos assombra por sua persistência no tempo e suas implicações para a sociedade da época, além do que seus efeitos presentes estão longe de serem perfeitamente compreendidas. O historiadores econômicos exploram com grande eficiencia os traços deixados pela população escrava na documentação. Seus estudos levantam questões e contróem quadros sociais que nos intrigam. Cabe aos historiadores sociais seguir as trilhas abertas por outros colegas e apresentar aos mesmos documentos outras questões, se desejarem reconstituir as condições de vida dos escravos, por exemplo. O que significa ser escravo no Rio de Janeiro, no Recife, em Casa Branca ou Iguape? Historiadores econômicos, sociais e antropólogos podem oferecer respostas parciais a essa questão e não esgotarão o tema.
Você pode conferir o artigo de Motta e Valentim na versão on line da revista Estudos Econômicos: http://www.fipe.org.br/web/index.asp